Mortes em operações policiais aumentaram 145% de 2021 para 2022, revela novo boletim de segurança pública da Redes da Maré

“Hoje você vai morrer, neguinho”. A declaração, segundo moradores da Nova Holanda, é de um policial ao prender Guilherme Vilar Bastos, de 19 anos, durante operação realizada em 25 de novembro do ano passado na Maré. Guilherme foi um dos mortos na ação, que teria como objetivo coibir movimentações criminosas relacionadas a roubo de carga e de veículos. O laudo cadavérico, entregue à familia na semana passada, revela que havia dez perfurações no seu corpo, a metade por arma de fogo.

— Assassinaram meu irmão, um garoto de 19 anos. Ele não estava armado. É muito fácil olhar um preto e falar que é bandido; colocar uma arma, um rádio na mão daquela pessoa, matar e alegar que era bandido — desabafa em entrevista ao Extra a cabeleireira Rafaella Vilar Bastos, de 28 anos, irmã da vítima, que está recolhendo documentos para dar entrada em uma ação de responsabilidade civil contra o estado, com o apoio da ONG Redes da Maré.

Novembro foi o mês de 2022 com mais mortes no complexo: nove. A letalidade em operações policiais nas 16 favelas da Maré, na Zona Norte do Rio, que tinha despencado para cinco óbitos, em 2020, quando começou a epidemia de Covid-19, voltou a crescer significativamente. No ano passado, das 39 mortes por arma de fogo na região, 27 ocorreram durante ações da polícia — as outras 12 aconteceram em meio a confrontos entre grupos armados. Um número que representa mais do dobro (ou 145%) em comparação com 2021 (11 nessas operações).

Os dados constam do 7º Boletim Direito à Segurança Pública da Maré, lançado nesta segunda-feira pela Redes da Maré, que mostra o impacto da violência armada no local. O documento revela que, das 39 mortes, 87% tinham sinais de execução. Coordenadora do eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré, Liliane Santos, destaca que a prática dos bandidos não pode ser a mesma da polícia.

— Se compararmos a polícia com grupos civis armados, acabou o Rio de Janeiro. Na polícia, a gente têm profissionais treinados, concursados, que são servidores públicos. Eles devem estar preocupados em promover o direito à segurança pública, e não serem violadores desse direito — diz ela. — Nas operações policiais, o percentual de mortes com sinais de execução chegou a 89% (24 dos 27 óbitos) no ano passado. Nesses casos, as vítimas não têm qualquer possibilidade de defesa. Elas sofrem uma sentença de morte, onde as chances de investigação e responsabilização dos culpados é mínima.

Pesquisa mortos por armas de fogo
Pesquisa mortos por armas de fogo Foto: Edidoria de Arte
Mortos por armas de fogo
Mortos por armas de fogo Foto: Editoria de Arte
Mortes por armas de fogo
Mortes por armas de fogo Foto: Editoria de Arte

Como Rafaella, o porteiro José Jardiel Souza Pirangi, de 39 anos, também perdeu um familiar para a violência armada em novembro do ano passado. O pai dele estava na porta de um bar tomando cerveja, quando foi surpreendido por uma operação. Alvejado, não resistiu.

— Quem prestou socorro ao meu pai foram os moradores da comunidade. Não tiveram coragem de colocar o meu pai num caveirão e levar para o hospital. Era como se ele fosse um lixo — diz Pirangi, em depoimento a Redes da Maré.

José Jardiel Souza Pirangi: pai foi baleado na frente de um bar e morreu
José Jardiel Souza Pirangi: pai foi baleado na frente de um bar e morreu Foto: Divulgação/Douglas Lopes/Redes da Maré

Impactos no cotidiano

A nova publicação cita o impacto das operações policiais no cotidiano de moradores da Maré. No ano passado, foram 15 dias sem aulas e 19 com suspensão de atendimentos de saúde. Segundo o levantamento, 62% dessas ações ocorreram perto de escolas e creches e 67% nas proximidades de unidades de saúde, o que contraria regras da chamada ADPF das Favelas (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635), definida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), “que contribuiu decisivamente para a redução de 82% das mortes entre 2019 e 2020”.

O documento assinala que, em nenhuma das 27 operações policiais que aconteceram no ano passado, foi identificada a presença de ambulância e equipes de saúde, outra exigência da ADPF. Também, conforme o documento, não foi observado o uso de câmeras de vídeo em uniformes e aparelhos de GPS em viaturas. Tal monitoramento é mais uma norma a ser seguida.

— Existe um aumento do número de operações policiais, e consequentemente de mortes, o que acontece também devido ao descumprimento das polícias em relação ao que o STF já determinou. No caso das câmeras nos uniformes, o governo implementou em batalhões da Zona Sul, que não têm registros de violações de direitos, como no caso das favelas — lamenta Liliane.

Além dos 39 mortos e 21 feridos, o levantamento contabiliza 283 violações de direitos no ano passado. Dentre elas, estão invasão a domicílio, violência psicológica, violência física, dano a patrimônio, cárcere privado, tortura, subtração de pertences, ameaças e assédio sexual.

Nos últimos anos, a Marcílio Dias se tornou a favela da Maré com o maior número de operações policiais. Em julho do ano passado, chegou a ficar ocupada por 15 dias Após os agentes se retirarem, operações voltaram a acontecer e o 16o BPM fixou uma base com uma cabine e um carro blindado na Avenida Lobo Júnior, uma das ruas da comunidade.

Perfil dos mortos

O boletim aponta ainda para um perfil padrão das 39 vítimas de 2022: 97% eram homens; 81% foram identificados como pretos ou pardos; e 61% tinham até 29 anos.

Desde 2016, o projeto “De Olho na Maré”, da Redes da Maré, monitora os impactos da violência armada no complexo, a partir de uma metodologia de recolhimento e análise de dados. Desde antes, a autônoma Rosileni Ramos da Silva, moradora da Vila do Pinheiro, já convive com a dor da perda para a violência armada. Em 2005, teve o filho assassinado. E, em setembro do ano passado, perdeu o marido, com quem vivia há 24 anos, em uma operação.

— Bateram nele primeiro e, depois, mataram — conta Rosileni, em depoimento a Redes da Maré. — Até quando vamos conviver com essa violência? Todo dia um parente chora por um ente querido. Só resta a dor e a saudade. Entendo que, pela lei, é pegar e prender. Não é tirar a vida do outro. Só quem tem direito de tirar a nossa vida é Deus. Para eles, todo mundo que mora em comunidade é traficante, é mãe de traficante, é filho de traficante. Não somos. Moramos aqui porque não podemos morar num lugar melhor. O que eu quero é Justiça, é limpar o nome do meu marido. Ele estava indo para a barraca de bebidas, onde eu estava trabalhando, para tentar me salvar, e acabou perdendo a vida.

Rosileni Ramos: perdeu filho e marido para a violência
Rosileni Ramos: perdeu filho e marido para a violência Foto: Divulgação/Douglas Lopes/Redes da Maré

O documento cobra do governo do estado a implementação de um Plano de Redução da Letalidade Policial, que inclua as reivindicações da sociedade civil e de órgãos como a Defensoria Pública do estado.

— O plano que apresentaram não tem metas, não tem nenhuma perspectiva de redução de danos. Não tem a ver com a letalidade policial, mas com a parte estrutural, o fortalecimento das polícias. Ele não contempla o que o STF pede. A perspectiva de investimento, de remuneração. Perdeu-se o foco — comenta Liliane.

O que diz o estado

Por e-mail, o estado afirma que vem investindo em câmeras operacionais portáteis — houve licitação para a compra de 21 mil. “As câmeras foram adquiridas para uso das forças de segurança — na Polícia Militar há 9 mil em uso em todos os 39 batalhões de área — , Defesa Civil e fiscalização”, diz.

Em relação ao Plano de Redução de Letalidade Decorrente de Intervenção Policial, o governo informa que enviou ao ministro Luiz Edson Fachin, do STF, uma versão atualizada. Segundo o Palácio Guanabara, foram realizadas audiência e consulta públicas. O texto, acrescenta, “incorpora sugestões encaminhadas por representantes da sociedade civil e instituições de estado, como Ministério Público, Defensoria Pública e OAB”.

De acordo com o governo, plano prevê o aprimoramento de três eixos de atuação: recursos humanos, recursos materiais e procedimentos administrativos/operacionais. “O texto tem metas, diretrizes, obrigações e vedações para prevenir a ocorrência de resultados letais decorrentes de intervenções policiais”, acrescenta. Já o Grupamento Especial de Salvamento e Ações de Resgate (Gesar) da PM adquiriu, no fim de 2022, conforme a nota, duas viaturas equipadas internamente com os mesmos recursos de uma UTI móvel e com a mesma blindagem dos veículos de transporte de tropa.

Irmã de jovem morto durante operação quer Justiça e vai ingressar com ação de responsabilidade civil contra o estado

Por Rafaella Vilar Bastos *

Rafaella Villar Bastos, irmã de Guilherme Vilar Bastos, morto aos 19 anos
Rafaella Villar Bastos, irmã de Guilherme Vilar Bastos, morto aos 19 anos Foto: Álbum de família

“No dia 25 de novembro de 2022, teve operação no Complexo da Maré. Pegaram meu irmão numa rua. Chegaram dando tiro nele. Ele se jogou no chão, levantou a mão, falou que era trabalhador, que tinha família, que estava indo para casa. Os policiais arrastaram ele. No laudo cadavérico, constam alguns hematomas nas costas. A pele dele saiu e ficou em carne viva.

Moradores da rua onde ele foi pego, gritaram, pediram pelo amor de Deus para não matarem, não atirarem nele, porque não estava armado. A rua inteira escutou quando um policial falou para ele: “Hoje você vai morrer, neguinho”.

Foram na minha casa me avisar que meu irmão estava nas mãos de policiais. Naquele momento, não entendi, porque ele não era bandido.

Na mesma hora, eu, minhas irmãs e o pessoal da ONG (Redes da Maré) fomos tentar chegar lá. Mas não nos deixaram aproximar. Ficaram dando muitos tiros para cima. Foi aquele desespero. Todo mundo chorando, gritando.

Queria entender o que acontecia, e perguntei a um policial o que meu irmão tinha feito para ter tomado tiro da forma como aconteceu. Queria saber onde ele estava. Depois de muito tiro, um policial veio e falou para mim: “Pegamos três meliantes”. “Que meliantes?” perguntei. Eu disse: “O meu irmão não é bandido”. E falei: “O nome dele é Guilherme”. O policial respondeu: “A gente não sabe o nome dele, não. Aí, ele falou o nome de algumas pessoas, mas não o do meu irmão. Ele não sabia nem quem tinha pegado. Essa foi a realidade. Pegou uma pessoa negra no meio da rua, atirou e botou como bandido.

O meu irmão teve dez perfurações, cinco foram de armas de fogo. As outra cinco a gente não sabe como foi. Só sabe que foi de perto e, muito provavelmente, provocadas por faca.

Assassinaram meu irmão, um garoto de 19 anos. Ele não estava armado. É muito fácil olhar um preto e falar que é bandido, colocar uma arma, um rádio na mão daquela pessoa, matar e alegar que era bandido. Só que meu irmão não tinha envolvimento nenhum com o tráfico. E ele estava com a perna quebrada. O gesso tinha saído, ele estava com a perna muito inchada e andando de muleta. Não podem falar que estava trocando tiros com eles, pulando laje. Como uma pessoa com um osso quebrado vai pular laje?

Guilherme Vilar Bastos (com a camisa do Flamengo) com os irmãos e o pai: morto aos 19 anos
Guilherme Vilar Bastos (com a camisa do Flamengo) com os irmãos e o pai: morto aos 19 anos Foto: Álbum de família

O meu irmão entrou na casa de um amigo, quando começou a operação. Depois, não escutou mais tiro e resolveu ir para casa. Na rua, bateu de frente com policiais. Foi quando aconteceu essa fatalidade. Eles não escutaram o que o meu irmão queria falar. Simplesmente atiraram, chamaram ele de neguinho, e arrastaram o meu irmão como se ele fosse um saco de lixo.

O meu morreu ali, onde a gente foi nascido e criado. Minha mãe faleceu quando o Guilherme tinha 10 anos. Desde então, eu e minhas irmãs o criamos. Morava comigo, nosso pai e meu companheiro, na Nova Holanda. Sou cabeleireira e ele ficava em casa cuidando do meu pai, que é cadeirante, para eu poder trabalhar. O meu pai precisa de alguém para levar no banheiro, dar banho, dar água.

O Guilherme morreu um dia antes do aniversário do meu filho, de 8 anos, que mora com os avós paternos. Morreu no dia 25 e, no dia seguinte, fiz o reconhecimento do corpo e fui ao velório de meu irmão.

Todo o dia acordo e olho o quarto do Guilherme. As coisas dele estão ali. Não mexi em nada, não consigo. É como se eu fosse acordar e ver ele lá, falando comigo, conversando.

Quero Justiça pela morte do meu irmão, botar minha cabeça no travesseiro e ter um sono digno. Tenho medo das coisas que acontecem na Maré. O estado é genocida com a gente que mora na favela. Muitas pessoas que moram aqui são do bem, estudam, querem ter um futuro bom até mesmo para sair daqui. Mas o estado vê a gente como uma doença, como um bicho.

Estamos recolhendo documentos para dar entrada em uma ação de responsabilidade civil contra o estado. O meu irmão tinha um futuro, que foi interrompido pela chacina. Com o sem envolvimento com o tráfico, não podem sair matando as pessoas. Eles têm que prender e não executar”.

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