Levantamento mostra que apenas dois de dez inquéritos de crianças mortas por balas perdidas foram concluídos no Rio

Hérica Braga fala da filha, Sofia Lara, sempre no presente. Recusa-se a usar os tempos verbais no passado para se referir à menina, morta por uma bala perdida em janeiro de 2017, quando não tinha nem 3 anos. Seis anos depois, ainda mergulhados na dor, Hérica e o marido, o policial militar Felipe Fernandes, encontram um obstáculo para seguir adiante: a falta de resposta sobre quem foi o responsável pela morte da menina.

— Continuo sendo mãe e tendo filha. Ela não deixou de existir, mas só de estar presente. Minha filha está viva para mim em todos momentos — emociona-se Hérica.

Sofia foi atingida por um tiro no parquinho de uma lanchonete, durante um confronto entre policiais militares e bandidos e, até hoje, o crime não foi resolvido, assim como outros sete casos de crianças mortas por balas perdidas ocorridos desde 2013. O EXTRA fez um levantamento de dez inquéritos abertos nos últimos dez anos e constatou que apenas dois foram finalizados. No entanto, nenhum deles foi a julgamento.

— A gente se pergunta por que o caso da nossa filha não foi solucionado. Queríamos saber se o tiro partiu do policial e ficamos com essa dúvida. Isso faz muito mal principalmente para o meu marido, porque o tiro pode ter vindo de um colega. É algo que mexe com ele — lamenta Hérica.

Larissa Carvalho, de 4 anos, saía de uma pizzaria em Bangu, na Zona Oeste, em janeiro de 2015Larissa Carvalho, de 4 anos, saía de uma pizzaria em Bangu, na Zona Oeste, em janeiro de 2015
Felipe Fernandes permanece na PM, mas hoje fica apenas em serviço administrativo, longe das atividades operacionais. O casal fez tratamento psicológico, e Hérica desenvolveu transtorno de ansiedade, depressão e um tipo de amnésia em relação a informações novas. Até hoje, o inquérito da morte de Sofia, que era filha única, segue na Delegacia de Homicídios da capital (DHC), sem solução.

— A gente tenta viver da melhor forma. A vida continua, infelizmente. E a dor existe se eu estiver deitada numa cama ou fazendo outra coisa. Mas a gente não quer deixar de saber de onde veio o tiro que matou nossa menina — afirma a mãe.

A esperança que Hérica tem de ver a morte da filha solucionada não é compartilhada por Milene Carvalho, mãe de Larissa, de 4 anos outra vítima de bala perdida no Rio. A menina foi atingida quando saía de uma pizzaria com a família em Bangu, em 2015. Depois de oito anos, o caso continua em aberto, sem identificação do responsável pelo tiro que atingiu a criança na cabeça. Larissa era filha única. Quando a menina morreu, Milene não sabia, mas estava grávida de Lorenzo, que hoje tem 6 anos. Recentemente, ela ainda deu à luz a Lorena, que tem quatro meses. Os dois dão um pouco de sentido para a vida da mãe, que passou a conviver com a ansiedade e arritmia cardíaca.

— Até hoje, não vou a vários lugares com medo. Se pudesse, não moraria mais no Rio. Mas a vida segue. As pessoas falam que sou forte e superei, mas na verdade não tive opção. É como se eu tivesse perdido um membro e tivesse aprendido a viver sem ele — desabafa Milene.

O nascimento do filho, Gael, de 3 meses, também ajuda Franciely Aparecida a se recuperar da morte de sua primogênita, Alice, de 5 anos. A menina morreu em seus braços após ter sido vítima de uma bala perdida no primeiro minuto de 2021. Logo após a meia-noite, a criança foi atingida no pescoço e não resistiu. A polícia também não conseguiu chegar ao responsável pelo disparo.

— Ele me anestesia, me obriga a lutar todos os dias. No último réveillon, consegui ficar acordada. No anterior, estava dopada. Um filho não substitui o outro, mas o Gael me dá ânimo, me fez reagir — conta.

Dos dez casos analisados pelo EXTRA, em seis houve troca de tiros entre policiais e criminosos.

Caso Ágatha: processo ainda em andamento

A morte da menina Ágatha Félix de 8 anos, atingida por uma bala perdida dentro de uma Kombi na comunidade da Fazendinha, no Complexo do Alemão, em setembro de 2019, está entre os inquéritos solucionados. Nesse caso, o policial militar Rodrigo José de Matos Soares admitiu que atirou com a intenção de dar um disparo de advertência para obrigar que dois homens em uma motocicleta parassem. O tiro atingiu um poste e os estilhaços feriram Ágatha. Ele foi indiciado por homicídio doloso – por dolo eventual, quando é assumido o risco de matar.

Mais de três anos após o crime, o processo contra o PM segue em andamento no 1º Tribunal do Júri da capital. As testemunhas de acusação e defesa já foram ouvidas, além do réu. Agora, o processo está em fase de alegações finais. Em seguida, a Justiça vai decidir se há provas suficientes para que policial seja levado a júri popular.

Procurada, a Polícia Civil não respondeu aos questionamentos feitos pelo EXTRA, assim como o Ministério Público estadual não enviou qualquer posicionamento do órgão.

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