Brasil tem mais de 800 presos em ‘solitárias’, regime denunciado na Corte Interamericana de Direitos Humanos

Em 1842, ao visitar o presídio da Philadelphia, nos EUA, e se deparar com um preso levado a uma cela solitária, o famoso escritor inglês Charles Dickens escreveu: “Ele é um homem enterrado vivo, para ser desenterrado no lento passar dos anos, morto para tudo exceto ansiedades torturantes e terrível desespero”. Nos últimos séculos, a utilização das solitárias, atualmente chamado regime de isolamento – quando o preso é confinado num espaço de poucos metros quadrados por ao menos 22 horas por dia, sem permissão para contatos humanos -, foi defendida por quem apontava necessidade de isolar prisioneiros perigosos, mas também criticada por outros que enxergam nela métodos de tortura, desproporcionais à punição.

 

As solitárias dos presídios brasileiros estão sendo contestadas na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), e decisões preliminares já indicaram que o Brasil viola as convenções internacionais. De acordo com os dados mais recentes da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), criado em 2003 e que estabelece o confinamento solitário para criminosos de alta periculosidade, é aplicado a 248 presos pelo país (estatística de dezembro passado).

Além disso, a solitária é a regra básica nas celas de seis metros quadrados dos cinco presídios federais de segurança máxima, o Sistema Penitenciário Federal (SPF), onde há 570 internos, incluindo 61 por mais de seis anos e oito por mais de 11 anos, segundo dados de abril. Somando, são 810 presos em isolamento no país, pois oito dos presos federais ainda estão enquadrados em RDD.

— Quando a pessoa fica mais de 22 horas por dia isolada, sozinha na cela, sem contato humano significativo, é tortura. Está agregando sofrimento que não tem nada a ver com a pena — afirma o defensor público federal Welmo Rodrigues, que assinou a petição da Defensoria Pública da União para integrar o processo na CIDH como amicus curiae (amigo da corte). — O preso não pode conversar livremente nem com o advogado, pois está sendo monitorado. Tudo é gravado, interceptado, então nem as visitas de familiares, quando têm, feitas através de parlatórios separados por vidro, proporcionam um contato significativo.

Presos em solitárias

  • 248 presos em Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), em 20 presídios do país. A unidade com mais pessoas nessa condição é a Penitenciária de Colatina (ES), com 48.

 

  • 570 internos nos cinco presídios federais de segurança máxima: 412 internos estão em confinamento por período de até cinco anos; 61, por seis a dez anos; e oito, por 11 a 16 anos.

Diretrizes criadas pela ONU para tratamento de presos no mundo, as Regras de Mandela – nome em referência ao ex-líder sul-africano, mantido numa cela de dois metros quadrados por 18 anos durante o Apartheid – vetam o “confinamento solitário prolongado”. No documento, esse confinamento é definido como a situação em que o preso fica por mais de 15 dias na cela individualizada, sem contato humano significativo e com permissão apenas para banhos de sol de duas horas. É com base nessa convenção internacional, da qual o Brasil é não apenas signatário, mas foi parte ativa para sua aprovação, que o RDD e o SPF foram denunciados na CIDH.

 

A ação teve origem em 2005, quando a irmã do chileno Mauricio Norambuena, autor do sequestro do publicitário Washington Olivetto, alegou que ele, mantido na solitária, estava recebendo “tratamento cruel, desumano e degradante”. Após transferências entre presídios estaduais de São Paulo e nos presídios do SPF, ele acumulou 17 anos em isolamento. Em 2019, o governo brasileiro o extraditou para o Chile, onde continua cumprindo pena.

Em 2011, a Comissão da CIDH, que faz a análise preliminar das acusações, concordou que o caso era admissível e publicou seu primeiro relatório, indicando que o RDD aplicado a Norambuena viola as convenções internacionais. Agora, a ação ainda precisa ser julgada pela corte, o que não tem prazo definido. Mas o processo teve um acréscimo há três meses, quando as Defensorias Públicas, da União e de São Paulo, pediram para se juntar ao processo, acrescentando as provas relativas às supostas violações no SPF.

Na origem da ação, a defesa de Norambuena só conseguiu provar que ele foi mantido em solitária nos presídios estaduais, pois não alcançou as documentações referentes à sua permanência nas prisões federais de segurança máxima. Welmo Rodrigues explicou que o acesso às decisões no SPF não é simples, e como o chileno trocou de advogados por algumas vezes, a coleta dos documentos se dificultou. Mas o defensor encontrou 24 recursos apresentados à Justiça contra sua permanência nos presídios de segurança máxima — ele foi preso em quatro das cinco unidades federais —, configurando as provas necessárias.

— Existe arcabouço internacional regulamentando isso. O isolamento é de no máximo 15 dias, podendo se estender excepcionalmente a 30 dias. Mas estamos falando de pessoas isoladas há anos — contesta Rodrigues, que reuniu, na manifestação da DPU, relatos de presos com sinais de “doenças mentais” desenvolvidas no isolamento. — Há relatos de pessoa que comeu as próprias fezes. Mas aí os presídios alegam que estão fingindo, ou que precisam medicá-los por causa de abstinência de drogas.

Como funcionam as penitenciárias federais

 

Criadas em 2006 para receber, em especial, líderes de facções criminosas, pessoas que tentaram fugir e outros perfis considerados de alta periculosidade, as prisões de segurança máxima já mantiveram cerca de 7 mil presos em suas cinco unidades: Mossoró (RN), Catanduvas (PR), Brasília (DF), Campo Grande (MS) e Porto Velho (RO). A principal diferença para o RDD é que não existe um limite para o isolamento. Já a legislação do RDD cita um período máximo de 360 dias, podendo ser renovado pelo mesmo tempo, sem exceder um sexto da pena. Em relação ao SPF, existe uma divergência entre o entendimento do Ministério da Justiça e Segurança Pública e a DPU.

Em troca de ofícios entre as duas partes em abril, a qual O GLOBO teve acesso, a DPU afirma que o artigo 10 da Lei 11.671 de 2008, que regulamenta os presídios de segurança máxima, expressa um limite de 360 dias e a possibilidade de renovação, que deveria ser de igual período, como no RDD. Mas o Ministério entende que a renovação é indiscriminada.

E essa posição foi respaldada pelo STF há oito anos, quando a corte decidiu que não havia “constrangimento ilegal” nas renovações sucessivas dos presos naquele regime. Naquela ação, num habeas corpus coletivo, a DPU pedia que presos que já estavam há mais de dois anos no SPF deveriam retornar ao regime comum. Hoje, dos 570 presos federais, 121 estão nas unidades há mais de dois anos.

Suicídios e uso de remédios controlados

 

Os ofícios também revelaram, a pedido da DPU, a quantidade de presos que utilizam remédios controlados e que já tentaram ou cometeram suicídio. Um caso recente famoso é o de Elias Maluco, encontrado morto em sua cela no presídio federal de Catanduva. Ele foi o sétimo preso a se suicidar desde a criação do SPF. Outros 17 já tentaram o ato. Já o número de agentes penitenciários dessas unidades que se mataram é maior: 9. Welmo Rodrigues explica que existe um “protocolo de suicídio” que consegue evitar a maioria das mortes dos presos, que ficam sem acesso a qualquer material cortante.

Por outro lado, mais de 50% dos presos em todas as cinco unidades usam remédios controlados, indo de 52% em Porto Velho a 72% em Campo Grande. No quadro de servidores do SPF, existem apenas um psiquiatra em Catanduvas e um médico clínico em Porto Velho/RO, mas as cinco unidades são atendidas por equipes de saúde municipais. De 2022 a abril desse ano, houve 1.151 atendimentos de psicologia e 3.774 de psiquiatria aos presos. Outra modalidade é a teleconsulta médica, em que 40%, entre 2020 e 2022 foram demandas de psiquiatria.

— O sistema tem contaminação cruzada. Todos adoecem, agentes e presos. Segundo estudos, a pessoa em isolamento tem seis vezes mais chance de cometer suicídio. Já o agente sofre pela relação de conflito. Ele é visto como carrasco, e vê o preso como ameaça, inclusive concreta, pois já houve agentes sendo ameaçados de morte — diz o defensor público. — O número de suicídio só não é maior por causa do protocolo de segurança, mas a pessoa continua em sofrimento. Quando a pessoa vai para o SPF, ela não sabe que dia vai sair de lá.

Na resposta à DPU, o Ministério da Justiça, que negou a vistoria de um psiquiatra da Defensoria nas unidades, disse que a acusação de “condições extremas de encarceramento” é superficial. A pasta justificou que “negar aos presos regalias que naturalmente possuíam no sistema penitenciário estadual – sem previsão legal alguma – não torna o SPF um regime energicamente rigoroso, mas puramente um sistema que confere ao preso tão somente o que lhe é de direito de acordo com a legislação, nada mais”.

O caso Norambuena

 

Ex-militante comunista e integrante da luta armada contra a ditadura militar chilena, Mauricio Norambuena foi preso em fevereiro de 2002 como autor do sequestro contra o publicitário Washington Olivetto, que seria supostamente uma forma de ganhar dinheiro para financiar a luta política no seu país. Ele, que já fora condenado por assassinato no Chile, foi condenado no Brasil a 30 anos de prisão e, desde o início da pena, foi submetido ao regime de isolamento e passou por sete presídios.

O chileno Mauricio Norambuena sendo preso após sequestro do publicitário Washington Olivetto — Foto: Paulo Cesar Bravos

Admitido na CIDH em 2011, apenas com as violações do RDD, o caso Norambuena vem se arrastando nos últimos anos. Em 2021, o relatório final manteve o entendimento de que o Brasil descumpria os artigos 5 (direito à integridade pessoal), 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial) da Convenção Americana. O Estado Brasileiro, que negou violação de direitos humanos e alegou que a defesa não havia esgotado os meios jurídicos brasileiros, foi recomendado a pagar uma indenização ao chileno. Um acordo foi proposto, mas a família não aceitou, pois deseja uma indenização que englobe ainda o período em que ele ficou no SPF, o que não foi admitido pela falta de provas e motivou a petição da DPU.

Professor da Pós-graduação em Criminologia da Escola Paulista de Direito, Sérgio Salomão Shecaira explica que um dos efeitos da manutenção de Norambuena em isolamento foi dificultar a sua defesa.

— Imagina a irmã ter que ir até Rondônia ou Mossoró. As transferências sucessivas dificultavam a visita, acho que foi uma tática de neutralização. Se o deixassem por 10 anos em um presídio poderia permitir que criasse laços até com entidades de proteção de direitos humanos — afirma o jurista, que concorda com a contestação na CIDH. — O judiciário brasileiro foi leniente. Porque, no momento que reconhece a possibilidade de manutenção de 17 anos em isolamento, fica evidente que é uma tortura institucional praticada pelo estado brasileiro. Estabelecer um regime assim no século XXI, de isolamento absoluto, por um ano já posso dizer que é torturante e está sendo feito para além do caso Norambuena.

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