Relação da população com o garimpo em Roraima aumenta dificuldade no combate à invasão na terra ianomâmi

Na praça do Centro Cívico, ponto turístico de Boa Vista, uma estátua de um homem com uma bateia homenageia os garimpeiros. Inaugurado no final da década de 1960, o monumento deixa claro o quanto a atividade está entranhada na história e cultura de Roraima — e como será difícil para o governo federal combater sua prática ilegal, relacionada aos casos de fome e doenças que levaram a Terra Indígena Yanomâmi a uma crise humanitária.

Após vários ciclos de corridas pelo ouro, os últimos anos marcaram uma nova onda de extração do metal, principalmente na terra ianomâmi. Enquanto cria estratégia para combater a atividade ilegal, com operações policiais e mudanças legislativas que facilitem o rastreio do ouro, o governo precisará lidar com o fato de que o garimpo é a única fonte de renda para milhares de pessoas no Norte do país.

O secretário de Acesso à Justiça, Marivaldo Pereira, adiantou que o foco inicial é inibir o comércio do ouro de extração proibida e discutir um plano para a retirada dos territórios indígenas.

Só na reserva ianomâmi, o governo federal tem de retirar de 20 a 50 mil garimpeiros, número que pode superar o de indígenas do lado brasileiro do território. Na próxima semana, as Forças Armadas irão a Roraima dar assistência aos ianomâmis e iniciar a retirada. As ações serão na comunidade de Surucucu, uma das mais afetadas pelos efeitos da extração irregular do ouro.

Estado alternativo

Analista ambiental do ICMBio, o especialista Cleberson Zavaski reforça que os últimos quatro anos foram marcados por omissão do Estado e que ações emergenciais pontuais não dão conta do problema. O analista explica que os garimpeiros são como um “estado alternativo” para os indígenas. Com os rios contaminados pelo mercúrio e sem caça para se alimentar, os nativos ficam à mercê dos invasores para comer, beber água e usar roupas.

— O governo precisa bloquear os acessos por ar e terra, mas também fornecer água, serviços de saúde e alimentação de qualidade para que a população se recomponha e não caia na mão de quem está lá atuando por troca de coisas básicas.

Garimpeiros procuram outros metais valiosos na terra indígena, como a cassiterita, que está se valorizando no mercado internacional, por ser usada para a produção do estanho, empregado em ligas maleáveis e que não têm ferrugem.

Os pedidos de pesquisa mineral ou de lavra para cassiterita, estanho e minério de estanho em terras indígenas cresceram de forma explosiva. Em 2019, foram seis, passando para dez em 2020. Em 2021, foram 27 pedidos. Em 2022, chegaram a 789, dos quais 503 em área ianomâmi, segundo a plataforma Amazônia Minada, desenvolvido pelo InfoAmazonia com informações da Agência Nacional de Mineração.

As apreensões também cresceram. A Polícia Rodoviária Federal recolheu no ano passado quase 200 toneladas da cassiterita de garimpo ilegal, um aumento de 212% em relação a 2021. Em uma das apreensões, foram descobertas 100 toneladas do mineral e presas seis pessoas, uma delas policial militar, que também tinham 1 quilo de ouro e armas. A carga foi avaliada em mais de R$ 15 milhões.

— Volta e meia aprendem caminhões com toneladas de cassiteritas — relata o economista Fabio Martinez, que fez um estudo sobre os minérios indígenas na economia de Roraima.

Embora o garimpo seja ilegal, a exportação de minérios de Roraima, que em tese não tem uma única mina, teve uma escalada. Até 2020, o ouro ianomâmi chegava a representar na balança comercial do estado quase 20% das exportações. No ano passado, em meio às operações policiais, o ouro sumiu da balança e deu lugar à cassiterita, cuja exportação somou mais de 690 toneladas. A aparente contradição deixa claro o quanto a atividade está enraizada no dia a dia do roraimense.

— A solução passa por oferecer alternativas para tirar pessoas do garimpo. Num momento de crise econômica, muitas pessoas entram para a atividade. Se olhar na internet, o tempo todo tem gente procurando emprego nesse meio, até em trabalhos indiretos, como operador de máquina, faxineira e até garota de programa — afirma Luisa Molina, antropóloga do Instituto Socioambiental (ISA).

Rua do ouro

Além da homenagem em estátua, Boa Vista tem uma “rua do ouro” onde se reúnem lojas especializadas. No local, que já foi alvo da Polícia Federal, todas as portas são fechadas com grades e sistema de segurança reforçado.

Nos últimos dois anos, aumentou no estado a abertura de salões de cabeleireiro, clínicas de cirurgia plástica, lojas de venda de carros e supermercados para atender ao enriquecimento do setor do garimpo.

O economista Fabio Martinez explica que não há dados oficiais sobre o impacto do garimpo para a economia local. Mas a partir de seus estudos sobre o tema, ele procura diminuir a importância da atividade em Roraima. E defende que não só o estado conseguiria manter sua economia sem garimpo, mas como teria vantagens que não se limitariam à preservação ambiental e da vida dos indígenas.

— É fato que existe impacto na economia, porque esses garimpeiros compram parte dos materiais e insumos no mercado local, como equipamentos, alimentos, combustíveis. Contudo, os empresários não têm como discriminar o que que vai para o garimpo ou o que vai para o consumidor comum. O garimpo está longe de ser nossa principal atividade econômica. Com o seu fim, não devemos ter impactos econômicos negativos. Pode até haver um alívio no custo de vida, porque muitos desses garimpeiros transformam o ouro em imóveis, o que inflacionou o setor imobiliário — afirma Martinez, que credita a recente ascensão econômica de Roraima ao agronegócio e até a exportações para a Venezuela.

O coordenador político do Movimento ‘Garimpo é Legal’, Jailson Mesquita, no entanto, insiste que a exploração de minérios aumentou o poder de consumo da população.

— É complicado a gente dizer quantos por cento o garimpo representa no PIB do estado. Se você colocar cerca de 50 mil famílias ativas financeiramente, fazendo compras e sempre em um padrão mais elevado do que o salário mínimo, é um peso grande. Nós hoje temos o maior número proporcional de caminhonetes por habitantes do Brasil. Isso se deve ao garimpo — apregoa Jailson.

Solução construída

O governador Antonio Denarium (PP), que já defendeu que os ianomâmis possam explorar eles mesmos o subsolo de sua reserva, rejeita ser favorável ao garimpo ilegal. Mas considera a repercussão da crise dos ianomâmis uma “tentativa de manipular a opinião pública” que é ruim para o Brasil e para Roraima:

— Sou favorável a uma solução construída com o governo federal e governos municipais para estudar a implantação de mineração fora das áreas indígenas em sistema de cooperativas, fiscalizadas pelo poder público e com todas as licenças ambientais. Essa mão de obra, de pessoas que buscam sobrevivência, poderá sair da ilegalidade para uma posição de trabalho com dignidade, respeito, obedecendo o meio ambiente e gerando riquezas.

O governador afirma que nunca ignorou o impacto do garimpo na saúde dos indígenas. Mas ressalva que a crise de assistência se estende por décadas.

— Plantamos em parceria com as comunidades indígenas mais de 2,4 mil hectares de milho e feijão, garantindo a segurança alimentar de 154 comunidades e mais de 1,8 mil famílias indígenas. Fiz a minha parte quando as comunidades estavam abandonadas — defende-se.

Mudanças na lei

Conforme mostrou O GLOBO nessa semana, o governo federal está preparando um pacote de mudanças legislativas como tentativa de se aumentar o controle sobre a produção do ouro. As medidas passarão por revisar duas leis antigas: a instrução normativa 49 da Receita Federal, de 2001, e a lei federal 12.844 de 2013. São esses textos que permitem o uso de nota fiscal impressa e a autodeclaração da origem do ouro no momento da venda, as principais brechas para a lavagem do ouro ilegal, de acordo com especialistas.

— Esse é o movimento inicial para o governo moralizar uma coisa que está absolutamente sem controle. Esse sistema sem controle se reflete exatamente no que chamamos de sistema perfeito de impunidade. Do jeito que está, é muito fácil entrar numa terra indígena ou unidade de conservação, tirar o ouro, e, na hora de vender, dizer que ele veio de uma área autorizada — explica Sergio Leitão, diretor-executivo do Instituto Escolhas, que realizou estudo que mostra que 53% (54 toneladas) do ouro produzido no país em 2021 tem graves indícios de ilegalidade. — Hoje a área de garimpo ilegal na Amazônia é maior que a área de toda mineração legal. Ou o Brasil acaba com o garimpo ilegal ou o garimpo vai acabar com a Amazônia.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *