São Cosme e Damião: cariocas falam sobre devoção e tradição dos saquinhos de doces

Considerados pela Igreja Católica e religiões de matriz africana como protetores das crianças, Cosme e Damião são celebrados nesta terça (26) e quarta-feiras (27), respectivamente. Padroeiros da Medicina e muito populares, eles também costumam ser exaltados em músicas e diversas outras manifestações culturais, mantendo assim a força da tradição da distribuição de saquinhos de doces, principalmente nos bairros das zonas Norte e Oeste do Rio.

A professora Ana Letícia de Souza Rodrigues, de 44 anos, faz a alegria da criançada há mais de 20 anos. “Eu cresci com essa tradição, com minha mãe dando doce e levando a gente para pegar. Minhas filhas também cresceram na mesma tradição. A gente chega em casa conta os saquinhos e depois despeja nas vasilhas, isso é todo ano. É um dia muito festivo para mim, minha mãe e para as crianças”, conta.

De acordo com Ana Letícia, que mora em São Gonçalo, na Região Metropolitana, essa tradição, no entanto, vem se modificando. Inicialmente, os doces eram distribuídos na porta de casa, mas com a baixa procura, ela vai à praça do bairro para entregar. “A cada ano infelizmente essa tradição vem diminuindo, mesmo assim persistimos. Começamos a distribuir em casa, só que não tem criança suficiente. Então minha mãe coloca os doces na bolsa, eu levo as balas e vamos para a praça do nosso bairro para terminar de distribuir. Ainda existem casas antigas que dão doces, brinquedos, bolo com refrigerante, mas são poucas”, ressalta a professora.
Ajuda para curar
Na tradição católica, Cosme e Damião eram irmãos gêmeos e médicos. Eles exerciam a profissão sem nenhum custo para a população. Missionários, foram perseguidos pelo imperador romano Diocleciano. Eles foram acusados de serem inimigos dos deuses romanos e usar artifícios para disfarçar as curas, e por volta de 300 d.C, foram decapitados. A Igreja celebra a data em 26 de setembro, por isso o movimento foi intenso na Paróquia São Cosme e São Damião, na Rua Leopoldo, no Andaraí, com a celebração de diversas missas ao longo do dia. Nesta quarta-feira, a programação se repete, com missas especiais a partir das 6h.
A coordenadora da Sala dos Milagres da paróquia, Helenice Maria, de 54 anos, contou que diversas pessoas vão à igreja para pedir ajuda dos santos e costumam retornar quando o desejo acontece. Segundo ela, a data representa uma época de amor e a caridade.
“O Dia de São Cosme e São Damião representa o amor e a caridade. As pessoas sabem que quem opera um milagre é Deus. No ano passado, uma senhora esteve aqui pedindo uma intercessão a São Cosme e São Damião para que a filha dela entrasse para a universidade. Esse ano, agora no dia 12, ela veio agradecer pela filha ter passado para medicina em uma universidade federal. Ela trouxe o jaleco em agradecimento.  Esse dia representa as graças alcançadas. As pessoas vem aqui na igreja demonstrar o carinho. As pessoas, ainda mais nessa pandemia, tiveram depressão, perdas familiares e, por isso, se apegam a sua devoção. Muitos católicos se apegaram a São Cosme e São Damião, como outro santos. Esse é um dia muito importante para quem é católico”, contou.
Helenice é a responsável por receber os devotos e os paroquianos, do estado do Rio e até de outras regiões do Brasil. Uma das fiéis que esteve presente na igreja nesta terça-feira (26) foi a autônoma Margareth do Rosário, de 40 anos, que esteve com o filho para celebrar a data e manter a tradição familiar.
“É um dia bem celebrado. Começou com meu pai, minha mãe e minha avó. Hoje, eu fui lá rapidinho depois que peguei meu filho na escola para celebrar a data de São Cosme e São Damião. Eu não quero deixar no esquecimento para ele. Não é só correr atrás de doce. Temos que ir na igreja fazer nossos pedidos e nossas orações direitinho. Depois, vem aquela tradição de correr atrás de doce”, comentou.
A estudante Maylla Rage de Albuquerque, 26s, segue a tradição da avó, que faleceu em 2015, e oferece os saquinhos até hoje. “Distribuo desde sempre, quando eu era mais nova fazia isso com a minha avó, ela faleceu e eu permaneci fielmente. E mesmo com 26 anos, pego doce até hoje, uso as criancinhas de álibi e vou que vou”, brinca Maylla.
De acordo com ela, a oferta de doces e a procura diminuiu muito ao longo dos anos. “Isso me entristece muito, já cheguei a dar 500 saquinhos, agora estou dando 100. Além dos preços terem subido bastante, teve um ano que ficamos caçando crianças na rua, não tinha mais movimento pra receber. Percebemos que a mesma criança estava pegando mais de uma vez e a rua já não tinha mais tanto movimento. Tivemos que entrar no carro e fomos procurando.”
O funcionário público Joelson da Costa, de 44 anos, foi ao Mercadão de Madureira com o irmão, nesta terça-feira, para comprar os doces. “É uma tradição de família, meu pai fazia e agora eu e meu irmão estamos fazendo. A gente vai distribuindo os doces de carro, normalmente entregamos uns 400 sacos e vai tudo, mas a tradição diminuiu muito, está perdendo um pouco essa essência”, conta.
Thaís Marques, 38, é autônoma e moradora da Cidade de Deus, na Zona Oeste. Sua casa também é um ponto de distribuição. “Eu sou devota deles. Nas vezes que eu precisei, eles estiveram do meu lado. Não é tradição de família, mas minha filha foi de um parto muito complicado, e eu fiz promessa que, se tudo desse certo, eu daria doces por sete anos, mas acabou que já se passaram 15 e eu continuo fazendo. Eu fui pro Mercadão com objetivo de usar R$ 300 e a conta deu certinho. Vou fazer uns 100 saquinhos. É um doce de agradecimento”, revela.
Culto aos Ibejis
Já nas religiões de matriz africana, os irmãos representam os orixás Ibejis, com a comemoração no dia 27. Também gêmeos, as divindades se tornaram médicos para curar todas as crianças, de forma gratuita. Em troca, recebiam brinquedos e doces. Algumas religiões ainda acreditam que eles tinham um trigêmeo, chamado Doum, que teria morrido ainda criança. Assim, os outros irmãos se tornaram médicos para curar a todas as crianças, de forma gratuita. Doum é considerado o protetor das crianças de até 7 anos.
“Dentro da Umbanda, chamadas ibejadas, são as crianças incorporadas por seus médiuns, são curadoras de doenças e problemas. O passe de uma criança é uma energia muito forte e condensada. Através da alegria e das brincadeiras, elas fazem coisas imagináveis”, ressalta Marcelo Varanda, presidente da Tenda Espírita Filhos de Iemanjá, na Tijuca, Zona Norte do Rio.
Nesta quarta-feira (27), haverá uma festa para a criançada no terreiro. De acordo com Marcelo, os preparativos já começaram. “Amanhã (quarta) teremos uma grande festa aqui, para as crianças materiais e espirituais, começa às 19h30. Vai ter doce, bolo, cachorro-quente, refrigerante. Oferecemos todas as guloseimas que as crianças gostam. É uma grande festa mesmo”, adianta.
Na Tenda Umbandista Caboclo Urucutum e Pai Zacarias, no bairro do Rocha, na Zona Norte, a data foi comemorada com antecedência. “A gente fez a festa no último fim de semana, porque seria melhor para o pessoal se fosse num domingo. Teve muito doce, bolo e alegria. Hoje, faremos uma programação mais simples”, explica o dirigente do local, Ricardo Polato.
De acordo com ele, a data traz muito alegria e felicidade aos frequentadores. “É um sincretismo né, a gente traz essa alergia e felicidade das ibejadas, as crianças espirituais, para recuperar nos adultos um pouco dessa espontaneidade de criança. A importância do Ibeji em si é muito grande dentro da Umbanda. Deus é tão perfeito que, no final das contas, ‘tá’ tudo interligado independente da religião, acaba sempre contando um pouco de cada cultura”, ressaltou Polato.
Movimento no comércio
João Batista, de 55 anos, trabalha em uma loja de doces, na Tijuca. Ele conta que, em 2020, a venda, nesta data, diminuiu por conta da pandemia e desde então, continua em queda. ” A gente sempre vendeu muito nessas datas comemorativas, mas depois da pandemia caiu e esse ano o movimento está 30% abaixo do normal, muito fraco mesmo. Nos anos anteriores, os investimentos foram maiores e o retorno mais rápido também, mas o pessoal está deixando de ir, não sei se são por questões financeiras ou se a tradição está acabando, antigamente tinham mais crianças nas ruas”, ressalta. De acordo com ele, os doces mais procurados são cocada, maria mole, suspiro, bala, pirulito e doce de leite.
Gerente de uma loja no Mercadão de Madureira, tradicional ponto de venda na Zona Norte, Dayverson Rossi afirma que a procura pelas guloseimas está abaixo do esperado. “A economia, ano passado, estava mais aquecida e atualmente a procura no Dia das Crianças é maior do que em Cosme e Damião, porque muita igreja dá doce. Em Cosme Damião são mais os devotos (que distribuem). A cada ano, vem diminuindo a procura e a loja acaba sofrendo também”, analisa.
Nesta terça, no Mercadão, apesar do relato do gerente, foi possível ver muitos cariocas fazendo filas, para comprar doces e outras guloseimas.
Músicas e vestuário
Cosme e Damião também já foram retratados em diversas músicas, livros e obras. Um dos devotos mais famosos é o cantor Zeca Pagodinho, que sempre promove uma farta distribuição de doces e brinquedos em Xerém, Duque de Caxias, onde tem um sítio. O sambista também já gravou canções que citam os santos, como “Falange do Erê”. Na Sapucaí, a devoção de Zeca foi lembrada pela Grande Rio durante o desfile desde ano, que exaltou a trajetória do artista.
Cosme e Damião também costumam ser retratados em roupas, acessórios e quadros, sempre disputados em feiras e outros eventos.

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