No centro do debate político-social, Nordeste será retratado em metade dos enredos

A Sapucaí vai se tornar o lugar onde o Rio é mais nordestino neste carnaval. As terras que são berço de Lampião e Mestre Vitalino marcarão presença em metade dos 12 desfiles do Grupo Especial, em quatro deles — Imperatriz, Mangueira, Mocidade e Unidos da Tijuca — como soberanas nos enredos. E a volta dos olhares para a região, concordam os artistas que preparam a festa, pode não ser mera coincidência. Eles afirmam que a profusão de brasilidade na Avenida ocorrerá num contexto em que a valorização dessa identidade retorna à pauta, após o Nordeste ter figurado no centro do debate político-social, muitas vezes sob hostilidades, como as do mais recente processo eleitoral nacional.

— A região é uma vitrine do Brasil no modo de falar e se vestir, na literatura, no cinema ou nas paisagens que se projetam do país. Mas, nos últimos anos, questões há séculos associadas à brasilidade passaram a ser atacadas. É natural agora, quando a marca de pluralidade do Brasil está de novo em foco, que as escolas de samba sejam um radar desse interesse — diz o carnavalesco Leandro Vieira, da Imperatriz.

Jack Vasconcelos, que assina o carnaval da Tijuca, corrobora com a ideia das agremiações como “antenas das vibrações” do povo:

— Parece que as escolas captaram essa força inconformada que, de uns tempos para cá, vem do Nordeste, seja pela situação política, social ou econômica do país.

Ministra na verde e rosa

Engana-se, no entanto, quem imagina que vão se repetir estéticas e temáticas vistas antes no Sambódromo. A Mangueira, que há 21 anos era campeã com o famoso samba do “Vou invadir o Nordeste”, desta vez abordará os cortejos afros da Bahia, dos cucumbis dos tempos da escravidão aos afoxés e blocos atuais, até chegar ao axé (que não é só o gênero musical).

— A partir do carnaval, lutou-se em vários campos e se reconstruiu a África na Bahia. Vamos mostrar isso com destaque para o protagonismo da mulher nesse processo — explica o carnavalesco Guilherme Estevão, que faz dupla com Annik Salmon na verde e rosa. — A Mangueira nunca se isentou do debate social. Com uma perspectiva festiva, vamos tratar também de liberdade, tolerância religiosa e combate ao racismo — continua ele, que estreia no Grupo Especial.

Entre os convidados para essa celebração, Guilherme revela que a nova ministra da Cultura, a cantora Margareth Menezes — que participou da gravação do samba da escola antes de ser chamada para a equipe do presidente Lula — está confirmada na Avenida. É aguardada ainda uma resposta de João Jorge, recém-empossado na Fundação Palmares e presidente do Olodum.

Outra apresentação tomada pela baianidade será a da Unidos da Tijuca, só que pelo viés da Baía de Todos os Santos, que banha Salvador e cidades do Recôncavo. Jack Vasconcelos fala em um “enredo experiência”, para retratar a vida e a cultura nesse pedaço de Brasil. O carnavalesco conta que lançará mão de signos da mistura (às vezes forçada, ressalta ele) que formou a região, seja na religiosidade, nas tradições ribeirinhas ou nas festas locais. E nas alegorias e fantasias, utilizará materiais como a palha de cana brava, da Ilha de Maré, e rendas de bilro dos artesãos do município de Saubara.

— Um visual meio aquático também permeará todo o desfile — diz Jack, que usa o neologismo “aquaticidade” para definir o estilo. — Ninguém vai ao Nordeste sem voltar diferente. Tem algo que não se explica. Ao percorrer a baía e seu entorno, percebi que todo mundo sabe da história de seu bairro, de sua rua. É um sentimento de pertencimento que quero que esteja presente na Avenida. É como se dissesse: “Olha o tamanho do país em que você nasceu” — completa.

Já em seu primeiro ano pela Imperatriz no Especial, a viagem de Leandro Vieira será ao Sertão, que ele adianta que não terá a estética da seca, e sim colorida e exuberante. Na contramão de caricaturas da região criadas no eixo Sul-Sudeste, Leandro diz que exibirá na Sapucaí um “Nordeste erudito” refletido nas obras de seus artistas populares. À moda delirante da literatura de cordel, ele vislumbrará o pós-morte de Lampião, que no enredo não achará guarida nem no céu nem no inferno.

— Cordelistas como José Pachêco escreveram sobre a chegada de Lampião ao inferno. Outros o levaram ao céu. Em alguns cordéis encontrou Padre Cícero. Vou juntar esses autos e transformá-los em imagens carnavalizadas. O desfecho é mais autoral, com a ideia de Lampião perpetuado como imaginário do homem nordestino. Na minha cabeça, ele não é bom nem mau, herói nem vilão. É abraçado pela cultura popular, das roupas de Luiz Gonzaga aos chapéus dos humanos em barro por Mestre Vitalino — conceitua Leandro, que levará, por exemplo, um teatro de mamulengos para a Passarela.

Vitalino e seus discípulos, aliás, aparecerão na Mocidade, que vai ao Alto do Moura, maior centro de artes figurativas das Américas, em Caruaru, Pernambuco. E o carnavalesco Marcus Ferreira antecipa:

— O desfile inicia com tons amarelados do barro tauá de Vitalino. Mas ganha diferentes colorações, de acordo com o trabalho de expoentes como Zé Caboclo, Manoel Galdino e Terezinha Gonzaga.

Tema também no acesso

Ainda no Grupo Especial, os costumes nordestinos serão parte do enredo da Vila Isabel, sobre as festas ligadas à fé. E o grito dos excluídos no bicentenário da Independência, na Beija-Flor, partirá do movimento da Independência do Brasil na Bahia, em 2 de julho de 1823. Na Série Ouro há mais duas escolas com temáticas da região. Com “Baião dos mouros”, a Unidos de Padre Miguel mostrará a influência árabe, moura e muçulmana no Nordeste. E a Estácio de Sá cantará um encontro imaginário entre São Luís e São João, que vêm à Terra para abençoar festejos juninos do Maranhão.

— É uma brincadeira, uma visão poética da festa — diz o carnavalesco Mauro Leite.

Ele promete levar os símbolos dos folguedos a cada detalhe, do figurino de musas como Maryanne Hipólito, que terá referências como a imagem de São João, aos carros alegóricos, no último deles com a presença da influenciadora digital Thaynara OG, que organiza o São João da Thay, uma das festas juninas mais disputadas de São Luís do Maranhão.

— É um sonho desfilar na Sapucaí. Imagina isso ligado às suas origens, a sua identidade, homenageando aquilo pelo que você luta — diz Thay.

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