Tranquilizante animal adicionado a drogas nos EUA causa onda de overdoses e feridas purulentas
Gilberto achava que conhecia a dor até experimentar a agonia da abstinência da xilazina, um tranquilizante animal usado para diluir drogas mais letais fornecidas pelos cartéis aos dependentes químicos nos Estados Unidos.
“Já levei um tiro e fui espancado, mas isto realmente me faz chorar”, disse Gilberto. O morador de rua de 44 anos, usuário de drogas, treme ao apontar para ferimentos profundos nas pernas, sinais característicos das injeções do poderoso sedativo também conhecido como “tranq”.
Gilberto é uma das centenas de pessoas que sofrem transtorno por uso de substâncias e que vivem uma existência caótica em Kensington, bairro decadente no norte da Filadélfia, onde viciados compram e usam drogas abertamente nas ruas. A área é o marco zero de uma crise de overdose que varre o país, impulsionada principalmente pelo fentanil.
As exigências dos EUA para reprimir o tráfico de fentanil na fronteira causaram um conflito com o México, onde se situam alguns dos cartéis mais poderosos. Esses grupos estão agora adicionando xilazina às drogas para aumentar os lucros, complementando-as com uma substância de baixo custo e criando uma nova e mortal ameaça à saúde pública dos EUA.
Nos últimos 18 meses, as autoridades rastrearam um aumento no número de overdoses de xilazina —mais difíceis de tratar do que as overdoses de fentanil porque a droga nunca foi aprovada para uso humano e nenhum antídoto foi desenvolvido. Em Kensington, instituições beneficentes criadas para ajudar viciados em recuperação ou com ferimentos não conseguem enfrentar o aumento de casos.
“É uma questão de urgência, e a vida depende disso”, disse Rahul Gupta, o chefe antidrogas da Casa Branca.
Especialistas em saúde dizem que a xilazina, que normalmente é usada por veterinários para sedar cavalos e gado, pode causar lesões purulentas que, se não forem tratadas, podem levar à amputação de membros. Muitos usuários dizem que não sabem que estão consumindo a droga, que parece ter sido misturada à heroína pela primeira vez em Porto Rico há quase 20 anos.
“Ela faz as pessoas apodrecerem de dentro para fora”, disse Jamill Taylor, inspetor da unidade de narcóticos da polícia da Filadélfia, ao jornal britânico Financial Times.
O número de overdoses fatais envolvendo a substância na Filadélfia aumentou de 15 em 2015 para 434 em 2021 –um terço de todas as overdoses fatais, segundo autoridades de saúde, e 90% do fornecimento ilícito de opioides na cidade hoje são adulterados com o tranquilizante animal.
“Está aumentando muito rapidamente. Precisamos de novos recursos”, disse Jeanmarie Perrone, fundadora e diretora do Centro de Medicina Penn para Medicina e Políticas de Dependência.
Taylor disse que as gangues de drogas perceberam que colocar xilazina no fentanil pode maximizar os lucros. Um quilo de pó do tranquilizante pode ser comprado online da China por US$ 6 a US$ 20, de acordo com a Agência de Combate a Drogas dos EUA (DEA) —mais barato que a heroína ou o fentanil. A euforia proporcionada pela substância dura mais que a de outros drogas sintéticas, disse ele, e pode ter consequências mortais por causa do “estupor do sono” que provoca nos usuários.
“Ele diminui a frequência cardíaca, retarda o sistema respiratório e interfere no sistema nervoso. Então, quando você cai de bruços, pode morrer asfixiado”, acrescentou Taylor.
A DEA alertou que a rápida disseminação da substância é semelhante à do fentanil vários anos atrás. No mês passado, o governo Biden classificou a mistura de uma “ameaça emergente” para os EUA. É a primeira vez que Washington visa uma substância química dessa maneira, refletindo as dificuldades para ajudar as vítimas e a crescente preocupação sobre a escala da crise que varre cidades como a Filadélfia.
“A reação à overdose de uma pessoa que usou a mistura é muito mais complicada porque a xilazina, sendo um não opioide, não responde à naloxona”, disse Gupta, que visitou Kensington no mês passado.
Vendida sob a marca Narcan, a naloxona reverte rapidamente a maioria das overdoses de opioides e se tornou uma arma fundamental nos esforços das autoridades para conter a onda que matou mais de 1 milhão de pessoas por causa de opioides legais ou fentanil. Agora, os socorristas estão tendo que adotar novas técnicas para reanimar os usuários.
“Narcan não é a única coisa que você precisa fazer agora”, disse Melanie Beddis, diretora do programa Savage Sisters, grupo sem fins lucrativos que trabalha com usuários de drogas em Kensington. “Você tem que fazer respiração de resgate e carregar tanques de oxigênio, porque a xilazina afeta o sistema respiratório e ele começa a parar”, disse ela.
Funcionários da Savage Sisters trabalham num espaço lotado perto de uma estação de metrô em Kensington, onde muitos usuários de drogas dormem na rua. A organização fornece alojamento para dependentes em recuperação, assim como alimentação e tratamento de feridas para os usuários da área.
Beddis, que, como a maioria da equipe das Savage Sisters, é uma dependente em recuperação, disse que muitos clientes não querem ir para o hospital, mesmo que seus ferimentos sejam graves, porque temem o estigma associado ao uso de drogas e os dolorosos sintomas de abstinência. Ela defende que hospitais e centros de reabilitação atualizem rapidamente seus protocolos de atendimento para ajudar pacientes com abstinência de xilazina.
“Foi a pior desintoxicação que já fiz –a mais dolorosa. A xilazina definitivamente mudou as coisas –acho que não dormi mais de uma hora durante 30 dias”, disse Beddis, acrescentando que só conseguiu se livrar das drogas enquanto esteve na prisão, onde elas não estavam disponíveis.
As autoridades locais e federais estão intensificando sua resposta à medida que a crise de overdose da substância se espalha pelos EUA.
Gupta disse que o governo Biden está desenvolvendo testes nacionais, protocolos de tratamento e cuidados de suporte, bem como estratégias para identificar e reduzir o fornecimento ilícito de xilazina. Também está investindo em pesquisas destinadas a desenvolver um antídoto para a droga e novas opções de tratamento, segundo ele.
Alguns hospitais da Filadélfia já começaram a fornecer serviços, incluindo tratamento de feridas, alívio da dor e tratamento de dependência. Mas os defensores dizem que muitos centros de saúde e clínicas de reabilitação precisam atualizar seus protocolos para parar de recusar usuários com feridas.
“Precisamos de remédios para dor, além dos remédios para abstinência”, disse Perrone. “Isso poderia ser metadona mais analgésicos opioides ou Suboxone com analgésicos opioides. Eles precisam de altas doses porque são dependentes do fentanil.”
Alguns estados americanos estão apertando os regulamentos sobre o uso e armazenamento de xilazina. O governador da Pensilvânia, Josh Shapiro, disse no mês passado que acrescentaria a xilazina à lista de substâncias controladas do estado, o que permitiria à polícia acusar as pessoas pelo uso inadequado do sedativo animal. Taylor disse que os novos poderes ajudariam a polícia da Filadélfia a tomar medidas mais fortes contra os traficantes após as batidas.
Mas muitos defensores do tratamento da dependência alertam que criminalizar o uso indevido de xilazina apenas limitaria a capacidade dos pesquisadores de estudar e testar a droga e poderia fazer com que os cartéis adotassem substâncias para diluição ainda mais perigosas. Eles observam que a guerra de meio século de Washington contra as drogas não conseguiu conter a capacidade dos cartéis transnacionais de operar no país.
“Se restringirmos o acesso à xilazina, quem sabe o que virá a seguir? Os traficantes de drogas nunca vão parar de inventar algo para vender”, disse Beddis. “Em vez disso, devemos aprender mais sobre essa droga, adotar novos protocolos para o tratamento das pessoas e tentar nos antecipar ao problema.”