Portela completa 100 anos como escola de samba mais antiga do Carnaval

É noite de quarta-feira em Madureira. As mesas de plástico ocupam a rua, o salsichão bronzeia na brasa e a comunidade se espreme para filmar as passistas paramentadas de azul e brilho, que riscam o asfalto até ultrapassar as catracas da quadra.

Sob a vigília de uma enorme águia iluminada, lá dentro os tambores rufam e o suor escorre. Não é o ensaio de sexta-feira, quando o público se enche de visitantes que pagam para vir de longe à zona norte carioca, por isso as cervejas agora são raras e os olhos, atentos.

É o centésimo Carnaval da Portela, e não dá para errar. A escola de samba celebrará na avenida dez décadas de existência como a agremiação mais antiga em atividade e a única que participou de todos os desfiles desde o surgimento da festa —a qual ajudou a moldar.

Tem também no currículo o maior número de títulos nesse período. Foram 22, além da contribuição imensurável de sambistas como Monarco (1933-2021), Candeia (1935-1978), Paulinho da Viola, 80, Noca da Portela, 90, e David Corrêa (1937-2020).

“Nessa escola só tem gente que compõe bonito”, brinca Wanderley Monteiro, 62, que em 2023 igualou esses dois últimos nomes em número de sambas-enredo campeões nos concursos da agremiação. “Só no número, não na história”, ressalva.

Sua sétima canção vencedora, escrita com outros seis compositores, entoa: “Vejo um futuro mais lindo nas mãos de quem sabe o valor do passado”. Os versos acompanham o enredo “O Azul que Vem do Infinito”, que vai narrar os cem anos da Portela pelo olhar de cinco de seus baluartes.

Cada um abarcará cerca de 20 anos de trajetória e lembrará os principais acontecimentos de sua época de protagonismo, começando por Paulo da Portela (1901-1949), o principal fundador do então bloco “Ouro sobre Azul”, no bairro ainda rural de Oswaldo Cruz.

“A escola era dirigida de forma diferente dos outros blocos e, para escapar da perseguição policial, evitavam-se os arruaceiros e os confrontos de rua”, explica a enciclopédia do Itaú Cultural. Entraram o terno branco, os sapatos e os anéis, e o grupo venceu o primeiro desfile oficial do Rio, em 1935, com “O Samba Dominando o Mundo”.

Quem carregou a bandeira da escola naquele ano e em muitos outros foi Dodô da Portela (1920-2015), a responsável por contar a segunda parte da história. Ela depois passará o bastão a Natal da Portela (1905-1975), bicheiro e patrono tão amado quanto polêmico.

Os já citados David Corrêa, compositor, e Monarco, último presidente de honra, vão encerrar o arco narrativo do desfile. Era consenso dentro da quadra que o enredo de 2023 versaria sobre o centenário.

“Finalmente chegou”, comemora Fábio Pavão, presidente atual da escola. “Este momento está cortando o coração do portelense. Tem uma carga emocional muito forte, relembrar as pessoas que nos deixaram, relembrar os desfiles passados.”

Ele tem todos na ponta da língua. Antropólogo de formação e pesquisador da Portela, Pavão destaca, por exemplo, quando a agremiação ganhou sete vezes seguidas, de 1941 a 1947, e depois outras quatro, de 1957 a 1960. É inesquecível também o título de 2017, após 33 anos de jejum.

Ele lembra ainda que a escola foi uma das grandes responsáveis pelo Carnaval ser o que é hoje. Criou fundamentos do espetáculo, incluindo o enredo contado a partir de alegorias e fantasias, a comissão de frente e o apito da bateria.

Mas não foram só momentos bons, vide o vexame de desfilar com uma águia sem asas em 2005. “Ficamos dez anos sem voltar ao desfile das campeãs, entre 1998 e 2008”, diz ele, ressaltando que é preciso pensar a história da Portela inserida na história da sociedade e da cidade.

“As escolas de samba da década de 1920 eram grupos comunitários, familiares, hoje são empresas. Acompanhar essas mudanças nem sempre é fácil, por isso só três das que participaram do primeiro desfile continuam em atividade, incluindo a Mangueira e a Unidos da Tijuca.”

O Carnaval mudou, e Madureira também. Transformou-se num grande centro comercial e caldeirão cultural, misturando a população negra expulsa do centro da então capital do país e ex-escravizados vindos do interior e de outros estados, como Minas Gerais.

Essa miscigenação entre urbano e rural formou a identidade “suburbana” da Portela. Na contramão, a escola ajudou a compor a identificação do que é ser Madureira, sendo frequentada por várias gerações do bairro.

Só na família da porta-bandeira Camyla Nascimento, 34, foram quatro. A avó, a tia, ela e a sobrinha já conduziram o estandarte azul e branco. Aprendeu com a pioneira Vilma Nascimento, 85, cuja elegância e leveza lhe renderam a alcunha de Cisne da Passarela.

“Ela conta que antigamente não se julgava a dança do casal, só a bandeira. Eles aproximavam a bandeira do jurado, que olhava os detalhes de perto”, diz a neta.

Vilma acompanhou as transformações do Carnaval da década de 1950 até os anos 1990 e conquistou diversos Estandartes de Ouro, o Oscar do espetáculo. Foi a primeira a usar penas na fantasia, costeiro com plumas e peruca feita com cabelo, entre outras inovações.

“A Portela é tradição e vanguarda, é uma das escolas de samba que não podem cair nunca”, resume o compositor Wanderley Monteiro enquanto, lá dentro, meninas sacodem a cintura e mexem as canelas olhando a velha guarda passar.

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