Censo do desamparo: Rio tem 7.865 pessoas morando nas ruas, 8,2% a mais em comparação a 2020

Há quase dez anos vivendo nas ruas do centro do Rio, o ex-pedreiro Rogério Oliveira dos Santos, de 42 anos, e a mulher, Michele Emereciano da Silva, de 33, sobrevivem de doações e de restos de comida catados no lixo e em feiras livres, ainda que recebam R$ 600 de programas sociais do governo por mês.

— Tanto tempo na rua me ensinou a sobreviver nessa selva. Você aprende a achar comida, lugar para se abrigar em dias de chuva e torce para não adoecer. O remédio para quem não tem casa é a oração. A gente só pode contar com a fé. E, às vezes, ela falha — disse Rogério.

O casal retrata o perfil da população de rua na cidade, de acordo com dados do novo censo que a prefeitura divulgará hoje. O levantamento identificou 7.865 pessoas sem teto, um aumento de 8,2% em comparação ao último censo, feito em 2020. Mesmo com o esvaziamento do Centro agravado pela pandemia de Covid-19, a região ainda concentra a maior parte das pessoas ao relento. Ali, o número de desabrigados subiu 18,2%.

Além disso, um terço das pessoas em situação de rua está na faixa etária do casal. Michele também não é alfabetizada como 11% dos entrevistados.

— Mesmo após o auge da pandemia, o Centro ainda tem um grande movimento de pessoas. A expectativa de terem uma ajuda atrai mais pessoas — disse o secretário municipal de Assistência Social, Adilson Pires.

Mais albergues

Num seminário previsto para hoje, em que os dados serão apresentados, o secretário vai anunciar um plano para tentar reduzir o número de sem-teto na capital. Uma das propostas é aumentar a oferta de albergues. Em outra frente, ele pretende conversar com os setores de hotéis, bares, restaurantes e supermercados. A ideia é que os empresários ofereçam treinamento e cursos para integrar essas pessoas ao mercado.

Hoje, a prefeitura dispõe de 1.612 vagas em albergues, comunidades terapêuticas e outros serviços. A meta é ampliar essa oferta em mais 500 até o fim deste ano:

— Vamos alugar imóveis em dez regiões da cidade e convertê-los em albergues, para prestar o atendimento de forma descentralizada. Também vamos avaliar se é possível recuperar um antigo abrigo na Central do Brasil, que está fechado por problemas estruturais — acrescentou Adilson Pires.

O secretário explicou que, nesses abrigos, os internos passarão por um processo de adaptação até que sejam capazes de alugar um imóvel, com uma possível ajuda financeira da prefeitura.

— Mas temos que ser realistas. É impossível zerar a população de rua. Os sem-teto estão presentes em outras grandes cidades do mundo, como Nova York.

Outro dado da pesquisa que preocupa é o número de dependentes químicos nas ruas: 1.227.

— Aprendi a morar na rua quando me vi sem nada. A bebida me levou para isso. Eu tentei parar, mas sabe como é… — diz o ex-porteiro Manoel Francisco Bento, de 63 anos, que costuma passar os dias na Praça da Cruz Vermelha.

Boa parte desses dependentes, no entanto, se concentra em cracolândias. A pesquisa detectou mudanças em comparação a 2020, quando o problema era mais identificado na Zona Sul e na região de Jacarepaguá. Hoje, quase 70% dos usuários ficam na Zona Norte, no entorno de comunidades como Manguinhos, Jacarezinho e Maré.

Outro indicador da pesquisa mostra que 43% das pessoas ao relento já moraram com parentes, mas acabaram na rua devido a brigas com a família. Foi o que aconteceu, por exemplo, com Ana Cláudia Barbosa, de 51 anos. Após se desentender com quem vivia em São Gonçalo assim que seus pais morreram, ela se mudou para o Rio. Ambulante, chegou a alugar uma quitinete, mas acabou ao relento porque não conseguia pagar R$ 200 por mês:

— Fico no Buraco do Lume durante o dia. À noite, durmo sob a marquise de uma loja próxima. Tomo banho no Museu de Arte Moderna. Comida, consigo na Praça da Cruz Vermelha, onde distribuem quentinhas. A nossa presença incomoda, eu sinto, mas estamos na rua por necessidade — disse.

Abuso de álcool e conflitos familiares também empurraram para a rua o ex-estoquista Marcelo Florentino, de 64 anos, que foi casado e tem cinco filhos, cinco netos e um bisneto.

— Se pudesse voltar no tempo, faria diferente. Mas a bebida não deixa a gente voltar para casa — disse.

O desafio de tentar reinserir moradores de rua na sociedade não é uma solução fácil na avaliação de dois especialistas. Ex-secretário nacional de Assistência Social, Marcelo Garcia avalia que encaminhar pessoas para empregos tem efeito limitado. O sucesso, diz, é maior quando a pessoa está há pouco tempo na rua:

— Quem vive nessa situação há mais tempo não está acostumado a ter disciplina, a cumprir horários. É difícil a adaptação. Também fui secretário da prefeitura (em meados dos anos 2000). Tentei isso. Foi desperdício de tempo e dinheiro. Uma das alternativas é tentar reaproximar essas pessoas das famílias.

Solução demorada

 

Ex-ministra de Assistência Social no governo FHC, Wanda Engel também já ocupou a pasta na prefeitura nos anos 1990. Ela diz que o processo de reinserção social pode ser bem demorado:

— Muitos sequer concluíram o ensino fundamental, o que dificulta conseguir um emprego. É preciso que desenvolvam habilidades. Talvez seja mais fácil reinserir famílias, porque querem encontrar uma solução.

A pesquisa seguiu a mesma metodologia adotada em São Paulo, que contou 31,8 mil pessoas morando nas ruas. Na comparação, o Rio tem uma pessoa nesta situação a cada 857,9 habitantes, enquanto que a capital paulista, uma a cada 387,7. O levantamento não levou em conta, por exemplo, aqueles que passam o dia pedindo nas ruas e voltam para casa à noite. O número a que o levantamento chegou também difere do que consta no CadÚnico (cadastro feito pelo governo para incluir pessoas de baixa renda em programas sociais), em que estão registrados 12.752 sem-teto no Rio e 49.555 em São Paulo. Esses dados são autodeclaratórios.

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