Mapeamento aponta onde as armas mais fazem vítimas no Rio; letalidade é maior em áreas em disputa

Os 60 fuzis apreendidos em 12 horas no Rio, na semana passada, são uma amostra de um arsenal usado para matar, em média, oito pessoas por dia no estado, sem sequer contar as vítimas das intervenções policiais. Esse efeito nefasto se revela em dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) sobre homicídios, feminicídios, lesões corporais seguidas de morte e latrocínios provocados por projétil de arma de fogo registrados nas delegacias fluminenses: 15.085 assassinatos a tiros de janeiro de 2018 a março deste ano, cerca de um quarto deles na cidade do Rio. Um rastro de sangue que, segundo mapeamento feito com base nos números obtidos via Lei de Acesso à Informação, frequentemente acompanha as guerras de criminosos por território.

Por esse ângulo, a análise do primeiro trimestre de 2023 já apontava que as atuais disputas entre tráfico e milícia na Zona Oeste do Rio alçavam Anil, Jacarepaguá, Itanhangá, Rio das Pedras e Taquara à lista das dez regiões com mais baleados mortos na capital. Um ranking, porém, em que Bangu, do outro lado da mesma região, se mantém no topo.

O bairro, incluindo comunidades como Vila Kennedy e Vila Aliança, foi onde a violência armada ceifou a vida de 184 pessoas de 2018 a 2022 e de mais 12 só de janeiro a março deste ano. Na gênese disso, pode estar um verdadeiro caldeirão do crime.

— Temos um histórico em que todas as facções do Rio se encontram aqui — afirma o delegado Aglausio Novais, titular da 34ª DP (Bangu), em referência à presença no bairro da milícia e de três grupos rivais do tráfico, além de quadrilhas de roubo a pedestres e de veículos.

Médicos executados

 

Em Jacarepaguá e arredores, por sua vez, o domínio das milícias posto em xeque pelo tráfico pode ser o pano de fundo da execução por engano, no último dia 5, na Barra da Tijuca, dos médicos Diego Ralf de Souza Bomfim, Marcos de Andrade Corsato e Perseu Ribeiro de Almeida, este último confundido com um miliciano, segundo a principal linha de investigação da Polícia Civil. É um bangue-bangue que já tinha produzido uma sequência de homicídios, a partir de fevereiro, na Rua Araticum, no Anil, que ganhou o apelido de Rua da Morte.

 

Coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da UFF, o sociólogo Daniel Hirata corrobora que costuma haver uma sobreposição entre as disputas pelo controle territorial armado e a mancha criminal de homicídios. Junto a outras instituições, o Geni realiza o Mapa Histórico dos Grupos Armados do Rio. E a morte, em junho de 2021, do miliciano Wellington da Silva Braga, o Ecko, então chefe do maior grupo paramilitar do estado, é apontada pelo especialista como um fator que desestabilizou as relações de força no Rio. Com a saída de cena de um hábil articulador de alianças, os bandos se fragmentaram em corridas por sua sucessão, abrindo brechas ao tráfico.

O rastro da violência — Foto: Editoria de arte
O rastro da violência — Foto: Editoria de arte

Tudo fragmentado

 

Em Bangu, onde o jogo do bicho também tem forte influência, o Mapa dos Grupos Armados aponta (e fontes policiais confirmam) que uma mesma região, a do Catiri, é repartida entre milícia e duas facções do tráfico. Perto dali, a Cancela Preta tem controle de um terceiro segmento do tráfico, que, embora enfraquecido, tem seu QG não muito distante, na Vila Vintém, em Padre Miguel.

Grandes conjuntos habitacionais também reproduzem essas disputas. Entre a Vila Kennedy e as comunidades da Vila Aliança e da Estrada do Taquaral, há uma cadeia de morros. De um lado, o predomínio é de uma facção. Do outro, está sua rival. No bairro, uma das guerras recentes afeta o Morro do 48, alvo de uma incursão, mês passado, de inimigos da quadrilha que mandava na favela.

— Não produzimos armas no Rio. Elas vêm de fora. O mais importante é não deixá-las chegar aqui. E o caminho é a integração de todos os responsáveis pela segurança pública, nas esferas federal, estadual e municipal. Se não, enxugaremos gelo. Apreendemos cem fuzis, que daqui a pouco são substituídos.

Com tantas armas circulando, surgem casos como o do último domingo, em que uma discussão em torno de uma garrafa de uísque acabou com um jovem morto no Catiri. Outro rapaz ajudou a pôr a vítima num carro para que fosse levado para o hospital. Mas logo depois, na confusão, também seria baleado: o projétil parou a centímetros de sua femoral.

— Nunca tinha visto a violência tão de perto. Coloquei a vítima nos meus braços, e acabei internado na mesma unidade que ele, onde recebi a notícia de que ele tinha morrido. Isso me faz refletir e endossa minha vontade de fazer o bem — diz o jovem ferido, preferindo não se identificar.

Municípios com mais mortes por projéteis — Foto: Editoria de arte
Municípios com mais mortes por projéteis — Foto: Editoria de arte

A assessoria de imprensa da polícia civil diz ainda que “segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), o indicador estratégico letalidade violenta apresentou 285 mortes no estado em agosto de 2023. Na comparação com o mesmo mês de 2022, o delito registrou redução de 22%. No acumulado do ano, a diminuição foi de 1%. Foi o menor número de vítimas para o período desde o início da série histórica, em 1991” e que “a atuação em comunidades é parte das ações de combate à criminalidade e se trata de um trabalho fundamental, uma vez que as facções utilizam os recursos advindos com as práticas delituosas para financiar seus domínios territoriais, com a restrição de liberdade dos moradores das regiões ocupadas por elas”.

Mortes por intervenção de agentes do estado — Foto: Editoria de arte
Mortes por intervenção de agentes do estado — Foto: Editoria de arte

A respeito do tráfico de armas, a polícia civil diz ter “investigações em andamento, por meio da Delegacia Especializada em Armas, Munições e Explosivos (Desarme) e outras unidades especializadas, e atua no combate a este crime junto a outras forças de segurança. As ações são pautadas em informações de inteligência. No entanto, é imprescindível a atuação de repressão em fronteiras e divisas, tendo em vista que o estado não produz fuzis, por exemplo. De acordo com o ISP, o número de fuzis tirados das mãos dos criminosos em 2023 aumentou em 36%, totalizando 472 unidades, dentro de um conjunto de 4.582 armas de fogo retiradas de circulação entre janeiro e agosto”.

 

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