Mulheres são maioria das cientistas no Brasil, mas quase nunca chegam ao topo

A física Márcia Barbosa, professora titular do Instituto de Física da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), estava em uma discussão acalorada com um colega estrangeiro durante uma imersão de pesquisadores em um evento na Califórnia, nos Estados Unidos.

Eles debatiam a aglomeração das suspensões coloidais, que contêm tanto moléculas grandes quanto partículas pequenas, e estão presentes no cotidiano da humanidade –desde a produção do desodorante spray e das fraldas até o processo de emulsão em que são fabricados a maionese ou o chantili.

Em determinado momento, as argumentações de Márcia convenceram a maior parte da plateia de pesquisadores. O oponente procurou justificar a derrota: “Não ganhei o debate porque você me distraiu com seu perfume.”

“Não era um amigo, era um ilustre desconhecido, que conseguiu reunir em uma única frase um exemplo de assédio moral e assédio sexual“, diz ela, 62, especialista em mecânica estatística, membro titular da ABC (Academia Brasileira de Ciências), membro da Academia Mundial de Ciências, que em 2020 foi eleita pela revista Forbes como uma das 20 mulheres mais influentes no Brasil e mencionada pela ONU Mulheres (braço das Nações Unidas para a promoção da Igualdade de Gênero) como uma das sete cientistas que moldam o mundo.

“Se eu fosse um homem, não teria ouvido este comentário.”

Na opinião de Márcia, o cientista menosprezou o seu conhecimento e a sua formação pelo simples fato dela ser uma mulher, numa clara manifestação de “misoginia”, diz. “Para uma mulher conquistar espaço no mundo científico, como em qualquer outro lugar, ela precisa provar muito mais o seu valor do que um homem.”

Dados da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) provam que existe uma barreira invisível para o avanço das cientistas no mercado de trabalho. As mulheres estão em apenas 3 de cada 10 ocupações em ciência, tecnologia, engenharia e matemática no Brasil, embora representem 44% da força de trabalho no país (segundo dados de 2020 da Relação Anual de Informações Sociais –Rais).

Hoje, apenas 28% dos pesquisadores de todo o mundo são mulheres, informa o relatório “Decifrar o código: educação de meninas e mulheres em ciências, tecnologia, engenharia e matemática”, da Unesco. Não por acaso, só 17 delas ganharam o Prêmio Nobel em física, química ou medicina desde a primeira laureada, Marie Curie, em 1903. Já entre os homens, 572 foram agraciados com o Nobel nestas áreas, ou seja, 97% do total.

Dados de um estudo divulgado este ano pelos pesquisadores Roberta Silva, Alice Abreu, Carlos Nobre e Ademir Santana, intitulado “Androcentrismo no Campo Científico: Sistemas Brasileiros de Pós-Graduação, Ciência e Tecnologia como estudo de caso”, que passou a integrar os anais da ABC, mostram que o avanço das cientistas no mercado de trabalho é desproporcional ao seu nível de conhecimento.

De acordo com o levantamento, as mulheres são a maioria (58%) entre os bolsistas da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), agência federal ligada ao MEC que fomenta a pesquisa no país, assim como entre os estudantes de mestrado (57%) e doutorado (54%).

Mas elas deixam de ser maioria entre os bolsistas da Capes no exterior (são 48%), assim como membros (46%) ou coordenadoras (38%) de grupos de pesquisa, ou como bolsistas de pesquisa (25%) do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) –órgão responsável pelo financiamento da maioria dos projetos de pesquisa de graduação e pós-graduação no país. No comitê de seleção da ABC, a mais alta instância entre os acadêmicos, elas somam apenas 7%.

“A maternidade responde por parte deste cenário: a cientista para de trabalhar para ter filhos, deixa de lado por algum tempo a sua produção de artigos –que é o que mede a produtividade de um cientista–, perde editais para conseguir novas bolsas em pesquisa, e acaba sendo desligada das redes de colaboração na comunidade científica”, diz Márcia Barbosa.

“Mas isto [a maternidade] está longe de ser o principal motivo para que as mulheres não ocupem o topo do mundo da ciência”, afirma a titular de física da UFRGS. No último dia 22, o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, anunciou a engenheira Luciana Santos (PCdoB-PE) como titular do MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações), algo inédito na história da Pasta. “As meninas são desde cedo vistas pela escola e pela família como ‘esforçadas’, enquanto os meninos são os ‘inteligentes’”, afirma.

Este ano, a Unesco Brasil lançou no país o EducaSTEM 2030 – Movimento Global de Meninas e Mulheres na Educação e Carreira em STEM para Sociedades Inclusivas e Sustentáveis (Stem é a sigla de ciência, tecnologia, engenharia e matemática, em inglês).

De acordo com o relatório da Unesco, muitas meninas são impedidas de se desenvolver nas áreas Stem “por conta da discriminação, pelos diversos vieses e por normas e expectativas sociais que influenciam a qualidade da educação que elas recebem, bem como os assuntos que elas estudam”. A iniciativa pretende contribuir para a sensibilização das escolas na sua abordagem pedagógica, a fim de estimular as crianças a se desenvolverem nestas áreas do conhecimento.

“A ciência precisa de diversidade, de diferentes olhares sobre uma questão, porque a ciência é neutra, mas os cientistas não. São eles que escolhem o que e como estudar”, diz Márcia Barbosa, que cita um estudo da consultoria McKinsey, “Diversity Matters: América Latina”. O levantamento, com 700 empresas de capital aberto na região, apontou que empresas que adotam a diversidade têm probabilidade significativamente maior de alcançar uma performance financeira superior à de seus pares que não o fazem.

“Peça a qualquer criança para desenhar um cientista e ela vai imaginar um homem branco, velho, de óculos e jaleco. É como se as meninas nunca pudessem chegar a este lugar.”

Com o objetivo de valorizar o trabalho das mulheres cientistas, a multinacional francesa de cosméticos L’Oréal promove todos os anos o prêmio Para Mulheres na Ciência. Realizado há 25 anos em nível global, o programa está na sua 17ª edição brasileira.

Em novembro, premiou sete brasileiras que receberam, cada uma, uma bolsa de R$ 50 mil para apoiar a continuidade das suas pesquisas –que abordam temas variados, desde os efeitos das mudanças climáticas na Amazônia até o uso de computação para avaliar mortalidade infantil, passando pela física aplicada à neurociência. Até hoje, a L’Oréal Brasil investiu R$ 5,1 milhões no prêmio, realizado em parceria com a Unesco Brasil e a ABC.

“A ciência é a base da inovação, é o que alimenta o futuro das empresas”, diz Cristina Garcia, diretora de pesquisa avançada e comunicação científica da L’Oréal América Latina. A empresa foi a primeira a investir na tecnologia para coloração para cabelos e no protetor solar.

Cristina destaca, no entanto, que o prêmio não tem o objetivo de trazer inovação para dentro da L’Oréal. Para isso, a empresa conta com outros programas como o “Cientistas do Futuro”, voltado a estudantes de graduação de áreas como Química, Farmácia e Biomedicina, que destina 50% das vagas a candidatos negros.

“O prêmio é importante para trazer visibilidade e reconhecimento às pesquisadoras, para que elas deem continuidade aos seus projetos”, diz Cristina, 47 anos, franco-brasileira que teve como uns dos principais desafios na L’Oréal introduzir, há sete anos, o modelo de pele reconstruída SkinEthic RHE, produzida pela empresa do grupo, a Episkin, criado para substituir os testes em animais. Até então, os testes da L’Oréal Brasil precisavam ser feitos no exterior.

Hoje, dois terços da equipe da área de pesquisa e inovação da L’Oréal Brasil são mulheres e a liderança no setor é dividida igualmente entre homens e mulheres. Uma diferença e tanto em relação à média nacional, onde apenas 31% dos que trabalham com ciência, tecnologia, engenharia e matemática no Brasil são mulheres. Na Academia Brasileira de Ciências, elas somam apenas 14% e só 7% estão no principal comitê.

Em 106 anos da ABC, foi somente em 2022 que uma mulher, Helena Nader, se tornou presidente da instituição. “Acho que isso poderia ter acontecido bem antes, em 1995, quando uma mulher, Johanna Döbereiner, chegou à vice-presidência da ABC”, diz Helena, 75 anos. “Mas talvez o Brasil ainda não estivesse preparado para isso.”

Biomédica e doutora em biologia molecular, Helena se diz muito orgulhosa por estar à frente da ABC. “Inclusive porque sei que me torno um modelo a ser seguido por meninas e adolescentes de todo o país”, afirma. “Ao mesmo tempo, sei que não tenho direito ao erro, porque a mulher fica muito mais visada quando assume cargos como este. Ninguém olha um homem na mesma posição com tanta lupa.”

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